Francisco de Assis e a Cruz de São Damião
Sumo, glorioso Deus, Ilumina as trevas do meu coração e dá-me fé direita, esperança certa e caridade perfeita, (bom) senso e conhecimento, Senhor, para que faça teu santo e verdadeiro mandamento. Amém. (Oração diante do Crucifixo)
Com estas palavras inspiradas Francisco de Assis rezava insistentemente diante do crucifixo pintado sobre madeira na pequena igreja de São Damião, nos arredores de Assis. Haviam se passado quase dois anos desde que seu pai conseguiu libertá-lo da prisão onde permanecera depois da guerra de Assis contra Perugia. Durante este período o jovem tentava se recuperar das enfermidades contraídas no cárcere, do mesmo modo com que buscava encontrar um sentido para sua vida, até que um dia finalmente ouviu do Cristo de São Damião: “Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja, não vês que ela está em ruinas?”.
As palavras que o jovem Francisco dirigia a Cristo em seu processo de busca revelam sua crise interior, mas também sua grande sensibilidade espiritual. A primeira coisa que ele pede é luz para as trevas que envolvem o seu coração e o pedido não poderia ser mais apropriado pois, nesta imagem, o rosto de Cristo, morto e ressuscitado, resplandece de luz, oferecendo ao expectador uma expressão visual perfeita da teologia que guiou o autor desta cruz, fortemente inspirada no Evangelho segundo João: “O Verbo era a Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1,9).
No crucifixo de são Damião Jesus é representado em proporções gigantescas em relação aos outros personagens e seu corpo quase transparente irradia uma luz eterna, que ilumina com uma luz nova, todo o mistério da Cruz. A composição inteira se estrutura a partir Dele e seu rosto se assemelha ao sol do meio dia. Apesar da ferida da lança em seu peito, ele tem os olhos bem abertos, pois esteve morto, mas agora vive e triunfa sobre a morte (Ap 1,18). Não estamos diante de uma “fotografia” da Sexta-feira Santa; o que temos diante dos olhos é uma síntese de todo o mistério da Salvação, desde a criação do mundo (Adão e Eva aos pés da cruz), passando pelos nossos dias (o Centurião romano) e apontando para a segunda vinda de Jesus (a Ascenção aos céus).
À altura do joelho esquerdo de Cristo vemos um pequeno galo. Ele nos recorda que na noite da quinta-feira, após a traição de Judas, cumpre-se a profecia de Jesus, segundo a qual Pedro o negaria três vezes. O galo nos recorda o momento da última negação (Mt 26,74), mas ele não está ali apenas para recordar a fragilidade humana e sim para afirmar a fidelidade divina. Apesar de nossa miséria, Deus permanece fiel e o que o galo está anunciando é o nascimento do dia eterno, ou seja, a vitória de Cristo, sol nascente que nos vem visitar do alto, àqueles que estão sentados à sombra da morte (Lc 1,78-79). A cena muito apagada aos pés da cruz é justamente a decida aos infernos, na qual Cristo desce para resgatar Adão e Eva do domínio da morte (Desceu à mansão dos mortos).
Sob os braços da Cruz encontramos a Virgem Maria, João Evangelista, Maria de Cléofas e Maria mãe de Tiago (Jo 19, 25). Além de um centurião romano (Mt 17, 54-56). Maria e João estão lado a lado, exatamente abaixo da ferida do lado de Cristo, da qual verte sangue e água, imagem do Batismo e da Eucaristia, os sacramentos que nos inserem na Igreja e que fazem a Igreja. Deste modo, Maria é também imagem da Igreja, a Nova Eva, que nasce do lado de Cristo, Novo Adão adormecido. Maria é a mãe, mas também é a Igreja, é a serva, mas também é a discípula. Ali, João é imagem de cada um de nós, que cremos em Cristo e fazemos parte de seu Corpo (Jo 19,26-27). O centurião é provavelmente aquele que pediu a Cristo que curasse o seu servo, dizendo não ser digno que o Senhor entrasse em sua casa (Mt 8,8). O servo aparece pequenino sobre os ombros do centurião.
São Longuinho aparece com a lança (Jo 19,34), bem pequeno, do lado direito de Cristo enquanto do lado oposto, em igual proporção, aparece um judeu burlão, que não reconhece a divindade do Messias (Mt 27,41-42). O soldado romano e o judeu são uma indicação da universalidade da Salvação operada por Cristo. Ela é destinada tanto ao povo da aliança (hebreus) quanto às gentes (o estrangeiro romano). Atrás dos braços de Cristo, a zona escura rodeada de anjos é uma referência ao sepulcro vazio e aos anjos que testemunharam a ressurreição. Dois deles, sem asas, são os jovens que dirão às santas mulheres: “Porque buscais o Vivente entre os mortos?” (Lc 24,4).
Acima da cabeça de Cristo, mais além da inscrição que afirma ser ele “Jesus de Nazaré, o rei dos judeus” (Mc 15,26), vemos o Cristo representando dentro de um círculo de luz, no momento da Ascenção. Ele é escoltado por anjos e também é recebido por anjos no céu, que se abre e onde vemos a mão do Pai. Nesta mão também está representado o Espírito Santo, pois, segundo o Veni Creator, o Espírito Santo é o dedo da mão direita do Pai (Dexterae Dei tu digitus).
Voltemos, porém, a contemplar o rosto de Cristo e percebamos que Ele não nos fixa com seu olhar, mas olha para o alto, para o Pai, de modo a se perder na contemplação dos pensamentos do Pai. Ele não olha para nós, com nossas misérias e fragilidades, mas olha além de nós, com os olhos do Pai, olha para o sonho que Deus Pai tem para cada um de nós; olha para o seu projeto de amor e o vê já terminado. Ele crê em nós, espera nossa resposta de amor e não nos deixa a sós. De fato, seus lábios sugerem um sopro e sabemos que este sopro é a Ruah, o Espírito Paráclito, o Consolador, que Ele nos deixou em Pentecostes (At 2,1-2) para que possamos permanecer unidos à Ele; e para que guiados por seu Espírito, cheguemos à intimidade profunda com o Pai, até que possamos repousar no seio da Santíssima Trindade: “E todos, eles e elas, enquanto isso fizerem e perseverarem até o fim, descansará sobre eles o Espírito do Senhor e fará neles habitação e morada. E serão filhos do Pai Celeste, cujas obras fazem. E são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo” (Carta aos fiéis II 48-50).