Interpelado pelos fatos, refletir a vocação
Quando os meus ossos estavam a ser formados e, eu, em segredo, me desenvolvia, tecido nas profundezas da terra, nada disso te era oculto.
(Sl 139,15)
Agosto, mês dedicado às orações pelas vocações cristãs. Mas, para muito além das preces que estão sendo rezadas em prol das vocações específicas nestes dias, são três fatos recentes que estão interpelando a minha vocação no momento e me feito rezar.
Primeiro, a páscoa do querido Pedro Casaldáliga, poeta, místico, profeta e bispo. Um homem que desde o início de sua atividade missionária no Brasil não arredou o pé da realidade cruel que viviam aqueles a quem lhe foi confiado o pastoreio. E até o fim, permaneceu firme no seguimento do evangelho. Pedro, como gostava de ser chamado, interpela-me a mim que sou franciscano capuchinho, a viver a radicalidade evangélica própria do meu carisma. Pedro inspira-me o despojamento, no sentido mais carismático que o nosso voto “sine proprio” nos exorta e obriga. Ele viveu pobremente, solidarizando-se na carne e no suor com os empobrecidos pelo regime ditatorial que, por sinal, ensaia-se hoje outra vez.
O outro fato interpelativo foi a resistência do Acampamento Quilombo Campo Grande, na cidade de Campo do Meio/MG. Foram três dias resistindo à ordem judicial que despejava mais de quatro centenas de famílias das terras ocupadas há vinte anos, em uma antiga área de uma usina falida. Disputa pela terra que Casaldáliga também defendeu em favor dos trabalhadores rurais, dos posseiros, dos povos indígenas. E para piorar, toda a execução desta ação no sul de Minas aconteceu em meio a esta pandemia histórica. Este caso, mais um de uma longa lista neste país, no mínimo tem de envergonhar a nossa consagração religiosa. “Onde quer que haja consagrados, aí está a alegria”, só que estamos muito bem acomodados em nossos conventos; por vezes, ocupados com mesquinharias ou letárgicos diante da realidade da nossa gente, muitos sem as condições mínimas para a subsistência e o enfrentamento da crise sanitária. Falta-nos a profecia de nossos santos para assumir a causa de tantos sofrimentos sociais, ambientais e morais como parte da natureza missionária da Igreja.
E o terceiro fato, tão difícil de expressar quanto incômodo, é o caso da criança triplamente violentada: pelo tio, pelos poderes políticos e por grupos religiosos e que, diante da gravidez precoce, teve autorização para realizar o procedimento abortivo. Três instituições da sociedade que lhe deviam proteger, tornaram-lhe o sofrimento muito pior. O estuprador, membro da família, praticava o crime há quatro anos. O Estado, que lhe devia amparar a infância, faz do caso um jogo político. E a religião que devia, no mínimo, agir com misericórdia e compaixão, prefere julgar e condenar a complexidade dos fatos, sem ater-se aos dados.
Como cristão, também defendo a inviolabilidade da vida desde a sua concepção. Defendo também a vida desta criança estigmatizada. E minhas convicções éticas e religiosas, apesar disso, não estão a par desta situação com a agudeza que merece para tomar a decisão pelos envolvidos. Aliás, não caberia a ninguém além dos familiares tomar qualquer decisão, todas elas difíceis e dolorosas. O caso interpela-me, pois, sou e somos todos vocacionados à vida, e queira Deus que seja vida em abundância para nascituros, para as crianças, para as mulheres e tantas vítimas da violência estrutural frequentemente naturalizada em nossa sociedade. Penso em como Jesus, fundamento da nossa vida cristã, agiria em tal situação, e só vislumbro a misericórdia de uma atitude concretamente receptiva e acolhedora, capaz de transpassar o nosso julgamento, tocar a nossa miséria, sujando-se também nela, para nos restituir a dignidade de filhos e filhas de um Deus que é vida plena.